Tradução para o português de Wu-ming (1947- )
Alguns filósofos modernos têm tentado estabelecer uma ligação entre o Ch’an e seus próprios conceitos e ainda tem sustentado que os mestres antigos usavam palavras sem nenhum sentido, gritos e outras gesticulações igualmente desconexas para iluminar seus discípulos. Obviamente, essas palavras, gritos, gargalhadas, etc., parecem sem sentido para uma mente discriminadora; mas assim que pára de discriminar, achará que estão cheios de sentido. Por exemplo, os gritos de Lin Chi tinham quatro significados diferentes, cada um apropriado para cada situação. Da mesma forma, uma gargalhada ou a amostra das duas mãos bem abertas são gestos cheios de significado. Quando se usa a mente discriminadora para comentar os ditados antigos, ver-se-á o dedo no lugar da lua que está sendo apontada.
Assim, nós não podemos culpar esses mestres pelos seus ditados aparentemente obscuros e abstrusos, porque se usassem as terminologias cunhadas pela inteligência humana condicionada, seus discípulos ir-se-iam apegar a elas, desviando-se assim do curso de treinamento normal. Quando o monge perguntou a Yun Men: “O que é Buda?”, o mestre sabia que a mente do questionador estava agitada pela palavra vazia “Buda” e para livrá-la da ilusão de Buda, respondeu: “Um desentupidor de privada”. Nisto, não havia nenhum desrespeito ao Iluminado, já que a resposta tinha por objetivo purificar a mente deludida do discípulo dessa idéia impura; pois, o Buda concebido por uma mente deludida nunca poderia ser o Buda puro, que está além de qualquer descrição. Entretanto, este caso particular não deve ser generalizado, já que a resposta foi apropriada para a pergunta naquele preciso momento. Por isso, Yun Men proibiu seus discípulos de registrar seus ditados. Da mesma forma, nós não podemos seguir o exemplo de Tan Hsia e sair queimando estátuas de Buda por aí. O monge, num primeiro momento, ficou chocado, mas quando ele entendeu o ato do mestre, suas sobrancelhas caíram e iluminou-se instantaneamente.
Essas palavras, frases, gritos, gargalhadas, gesticulações e golpes de bastão são conhecidos como kung-an (koan, em japonês) ou causas contribuintes, capazes de provocar o despertar daqueles discípulos cujas mentes já estão livres da ilusão e cujas potencialidades são estimuladas ao máximo, estando prontas para absorver a verdade. Por exemplo, quando Hui K’o pediu a Bodidarma para aquietar sua mente, mas foi incapaz de mostrá-la para seu mestre, o Primeiro Patriarca, declarou: “Então eu aquietei sua mente”. Ao ouvir essa declaração, o Segundo Patriarca iluminou-se instantaneamente. Essa frase foi um kung-an que contribuiu para a iluminação de Hui K’o. Literalmente, kung-an significa: dossiê, registro, leis e regulamentos do poder público criados para resolver disputas e manter a lei e a ordem. Da mesma forma, todas as instruções dadas pelo Buda e pelos Patriarcas para iluminar as pessoas deludidas são chamadas “As Ordens Corretas” da Seita ou guias irrevogáveis para revelar a verdade, e são denominados os kung-ans Ch’an. Po-Yen, disse: “Quando recebiam homens de diferentes potencialidades, os antigos eram obrigados a dar-lhes instruções, que eram chamadas kung-an ou causas contribuintes”.
A seguir, a exposição de 22 kung-ans compilados por Hsueh Tou (982-1052), um mestre Ch’an da escola Yun-Men (hoje desaparecida), que construiu as fundações dos 100 versos que compõem o Pi-yen-lu, conhecido no Ocidente como The Blue Cliff Record.
Kung-an
# 1: O Mais Elevado Sentido das Verdades Santas
O Imperador Wu de Liang
perguntou ao Grande Mestre Bodidarma: “Qual é o mais elevado sentido das
verdades santas?”.
Bodidarma respondeu:
“Vazio, sem santidade”.
O Imperador perguntou:
“Quem está na minha frente?”.
Bodidarma respondeu;
“Não sei”.
O Imperador não
entendeu nada. Depois disso Bodidarma atravessou o Rio Yangtse e chegou ao
reino de Wei. Mais tarde, o Imperador relatou o diálogo ao Mestre Chih e
pediu-lhe esclarecimento.
Mestre Chih, perguntou:
“Por acaso sua Majestade sabe quem é esse homem?”.
O Imperador respondeu:
“Não, não sei”.
Mestre Chih disse: “Ele
é Mahasattva Avalokiteshvara transmitindo o Selo da Mente de Buda”.
O Imperador mostrou-se
arrependido, e assim queria enviar um mensageiro para convidar Bodidarma a
retornar ao seu reino.
Mestre Chih lhe disse:
“Majestade, não diga que enviará um mensageiro para convidá-lo a voltar. Mesmo
que todos os cidadãos do reino fossem atrás dele, ele ainda assim não voltaria”.
Kung-an
# 2: O Caminho Supremo não é Difícil
Chao-Chou, ensinando à
assembléia, disse: ”O Caminho Supremo não é difícil, apenas evitem escolher e selecionar.
Enquanto houver palavras faladas, ‘escolher e selecionar,’ ’isso é a iluminação’.
Este velho monge não mora dentro da claridade; vocês ainda preservam ou não alguma
coisa?”.
Nesse momento, um monge
perguntou: “Já que você não mora dentro da claridade, o que você preserva?”.
Chao-Chou respondeu:
“Eu também não sei”.
O monge disse: “Já que
você não sabe, Mestre, porque você insiste em dizer que não mora dentro da
claridade?”.
Chão-chou disse: “Você
já perguntou demais sobre o assunto, faça a reverencia e saia”.
Kung-an
# 3: O Mestre não Está Bem
O Mestre Ma não estava
bem. O Superintendente do templo lhe perguntou: “Mestre, como tem estado sua
saúde por esses dias?”.
O Grande Mestre,
respondeu: “O Sol de frente para Buda, a Lua de frente para Buda”.
Kung-an
# 4: Carregando sua Trouxa
Quando Te Shan chegou ao
mosteiro de Kuei Shan, ele levou sua
trouxa para dentro do auditório, e o atravessou de Leste a Oeste e de Oeste a
Leste.
Ele olhou em volta dele
e disse: ”Não há nada nem ninguém aqui”. Então, ele saiu.
Hsueh Tou acrescentou o
comentário: “Completamente exposto”.
Mas quando Te Shan
chegou ao portão do mosteiro, disse:
“Não deveria ter sido tão rude”.
Então, ele voltou a entrar no auditório cheio de
cerimônia para se encontrar com Kuei Shan. Assim que Kuei Shan se sentou no seu
lugar, Te Shan levantou sua esteira e disse: “Mestre!”.
Kuei Shan segurou seu
espanador, ao que Te Shan gritou, sacudiu suas mangas e saiu.
Hsueh Tou comentou:
“Completamente exposto”.
Te Shan deu as costas
para o auditório, calçou suas sandálias de cânhamo, e partiu.
Essa noite Kuei Shan
perguntou ao monge chefe: “Onde está esse forasteiro que acabou de chegar?”
O monge chefe
respondeu: “Naquela hora que ele deu as costas para o auditório, ele calçou as
sandálias e partiu”.
Kuei Shei disse: “Daqui
a algum tempo esse jovem irá ao pico de uma montanha solitária, construirá uma
cabana de capim, e irá em frente escrachando Budas e injuriando Patriarcas”.
Hsueh Tou comentou:
“Ele acrescenta gelo à neve”.
Kung-an
# 5: O Grão de Arroz
Hsueh Feng, ensinando a
sua comunidade, disse: ”Segurem o mundo inteiro em suas mãos, e ele é tão
grande como um grão de arroz. Joguem-no na sua frente, e se como um balde
laqueado, vocês não entendem, eu baterei no tambor e todo mundo virá para ver”.
Kung-an
# 6: Todo Dia é um Bom Dia
Yu Men disse: “Eu não
pergunto a vocês até quinze dias antes; tratem de dizer algo até quinze dias depois”.
Yu-Men, ele mesmo,
respondeu: “Todo dia é um bom dia”.
Kung-an
# 7: Pergunta Sobre Buda
Um monge perguntou a Fa
Yen: “Hui Chao pergunta ao mestre, o que é Buda”?
Fa Yen disse: “Você é
Hui Chao”.
Kung-an
# 8: As Sobrancelhas de Ts’ui Yen
No final do retiro de
verão Ts’ui Yen disse à comunidade: “Passei o verão inteiro falando para vocês,
irmãos; olhem e vejam se minhas sobrancelhas estão ainda no lugar”.
Pão Fu disse: “O
coração do ladrão é covarde”.
Ch’ang Ch’ing disse:
“Cresceram”.
Yun Men disse: “Uma
barreira”.
Kung-an
# 9: Os Quatro Portões
Um monge perguntou a
Chao-chou: “Quem é Chao-chou?”.
Chao-chou respondeu: “o
portão leste, o portão oeste, o portão sul, o portão norte”.
Kung-an
# 10: O Ladrão Impostor
Mu Chou perguntou a um
monge: “De onde você acabou de chegar?”.
O monge deu um grande
grito.
Mu Chou disse: “Você
gritou comigo uma vez”.
O monge gritou de novo.
Mu Chou disse: “Depois
de três ou quatro gritos, então o que?
O Monge não disse nada.
Mu Chou deu um chute no
traseiro dele e disse: “Que ladrãozinho impostor que você é!”.
Kung-an
# 11: Os Restos de Migalhas
Huang P’o, instruindo a
comunidade, disse: “Todos vocês são como restos de migalhas; se vocês continuam
peregrinando desse jeito, onde alcançarão o presente? Vocês não sabem que não
existe um único Mestre Ch’an na China inteira?”.
Nesse momento, um monge
veio para frente e disse: “Então porque tem aqueles que ordenam monges e
comandam comunidades?”.
Huang P’o, disse: “Não
digo que não há Ch’an; apenas digo que não há Mestres”.
Kung-an
# 12: Três Libras de Cânhamo
Um monge perguntou a
Tung-shan: “O que é Buda?”.
Tung-shan
respondeu:”Três libras de cânhamo”.
Kung-an
# 13: A Neve na Tijela de Prata
Um monge perguntou a
Baling: “O que é a escola de Kanadeva?”
Baling respondeu:
“Empilhar neve numa tigela de prata”.
Kung-an
# 14: Uma Declaração Apropriada
Um monge perguntou a
Yun Men: “ Quais são os ensinamentos de uma vida inteira?”.
Yun Men respondeu: “Uma
declaração apropriada”.
Kung-an
# 15: Uma Declaração Inapropriada
Um monge perguntou
Yun-Men: “Quando não há intelecto, quando não há fenômenos, o que acontece?”.
Yun Men disse: “Uma
declaração inapropriada”.
Kung-an
# 16: Uma Declaração Inapropriada
Um monge perguntou
Ching Ch’ing: “Eu estou saindo à força; eu peço que o mestre entre à força.”
Ching Ch’in disse: Você
irá viver ou não?”.
O monge respondeu: “Se
eu não fosse viver as pessoas ririam de mim”.
Ching Ch’ing disse:
“Você também é um homem preso nas ervas daninhas”.
Kung-an
# 17: Bodidarma Vem do Oeste
Um monge perguntou a
Hsian Lin: ”Qual é o significado do Patriarca ter vindo do Oeste?”.
Hsian Lin respondeu:
“Ficar sentado por um longo tempo cansa”.
Kung-an
# 18: O Monumento sem Emendas
O Imperador Su Tsung
perguntou ao Grande Mestre Hui Chung: “Depois de morrer, o que será necessário
para você?”.
O Grande Mestre disse:
“Constrói um monumento sem emendas para mim”.
O Imperador disse: “Por
favor, me diga Mestre, como deve ser esse monumento?”.
O Grande Mestre
permaneceu em silêncio durante um longo tempo; depois perguntou: “Você
entende?”.
O Imperador disse:
“Não, não entendo”.
O Grande Mestre disse:
“Tenho um discípulo, Tan Yuan, ao qual
eu transmiti o ensinamento e ele sabe muito sobre esse assunto. Por favor, convoque-o e pergunte-lhe sobre esse assunto”.
Depois que o Grande
Mestre morreu, o Imperador convocou Tan Yuan e lhe perguntou o significado de
tudo isso.
Tan Yuan, disse:
“Ao sul de Hsiang, ao
norte de Tan;
Entre esses dois há
suficiente ouro para uma nação inteira;
Debaixo da árvore sem
sombra a comunidade atravessa de barco;
Dentro do palácio de
cristal não há ninguém que saiba “.
Kung-an
# 20: Bodidarma Vem do Oeste
Lung Ya perguntou a Ts'ui Wei: “Qual é o significado do Patriarca ter
vindo do Oeste?”.
Wei respondeu: “Me
passa o bracelete de meditação”.
Kung-an
# 21: Flor de Lótus, Folhas de Lótus
Um monge perguntou a Chih
Men: “O que acontece quando a flor de Lótus ainda não emergiu da água”.
Chih Men disse: “Uma
flor de Lótus”.
O monge disse: “ O que
acontece depois que emergeu da água?”.
Chih Men disse: “Folhas
de Lótus”.
Kung-an
# 22: A Cobra com Nariz de Tartaruga
Hsueh Feng ensinava à assembléia:
“Na Montanha Sul vive uma cobra com nariz de tartaruga. Todos vocês devem dar
uma boa olhada”.
Ch’ang Ch’in disse: “Hoje
no auditório certamente há alguns perdendo seus corpos e suas vidas”.
Um monge relatou o
episodio para Hsuan Sha.
Hsuan Sha disse: “O
Irmão Ch’ang Ch’in é assim. Eu não”.
O monge perguntou: “E
você, Mestre?”.
Hsuan Sha disse: “Para
que usar a Montanha Sul?”.
Yu men jogou seu bastão
na frente de Hsueh Feng, fazendo um gesto de pavor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário