domingo, 4 de dezembro de 2011

* KUNG -AN (Koan)

Tradução para o português de Wu-ming (1947-    )

 Introdução
A finalidade da Seita Ch’an é despir a mente de todas as paixões e apegos com o propósito de libertá-la do mundo fenomênico, de forma que a própria-natureza possa retornar ao seu estado normal sem impedimento. Em vista disso, os mestres Ch’an raramente usavam aqueles termos Budistas encontrados em todos os sutras, já que os homens estão sempre propensos a apegar-se à terminologia que, na sua procura por mais ensinamento e maior sabedoria, só serve para estimular as faculdades do pensamento e intensificar as discriminações. Os mestres orientavam seus discípulos a evitar a procura da iluminação e a Budeidade, porque a simples idéia da iluminação e da Budeidade dava lugar ao conceito dual de realidade do ego e realidade do Darma, o que dividia seu todo indivisível em sujeito e objeto, a causa de sua ilusão e sofrimento.  Essa é a razão pela qual os termos comumente encontrados nos sutras são raramente encontrados nos textos Ch’an, e por isso parecem estranhos e incompreensíveis mesmo para os Budistas das outras escolas. Esses textos são tão obscuros e incompreensíveis como as Profecias de Nostradamus e, freqüentemente, leitores confusos os colocavam de lado para sempre após ler algumas poucas páginas.  Nenhum mestre esclarecido se dava  ao trabalho de dar uma explicação clara ou um comentário compreensivo dos ditados de seus iluminados predecessores. Mesmo quando citavam os ditados antigos, ao dar as instruções aos seus próprios discípulos, seus comentários, que variavam de uma frase a uma stanza (verso), eram igualmente  obscuros e confusos para os principiantes.
Alguns filósofos modernos têm tentado estabelecer uma ligação entre o Ch’an e seus próprios conceitos e ainda tem sustentado que os mestres antigos usavam palavras sem nenhum sentido, gritos e outras gesticulações igualmente desconexas para iluminar seus discípulos. Obviamente, essas palavras, gritos, gargalhadas, etc., parecem sem sentido para uma mente discriminadora; mas assim que pára de discriminar, achará que estão cheios de sentido.  Por exemplo, os gritos de Lin Chi tinham quatro significados diferentes, cada um apropriado para cada situação. Da mesma forma, uma gargalhada ou a amostra das duas mãos bem abertas são gestos cheios de significado. Quando se usa a mente discriminadora para comentar os ditados antigos, ver-se-á o dedo no lugar da lua que está sendo apontada.  

Assim, nós não podemos culpar esses mestres pelos seus ditados aparentemente obscuros e abstrusos, porque se usassem as terminologias cunhadas pela inteligência humana condicionada, seus discípulos ir-se-iam apegar a elas, desviando-se assim do curso de treinamento normal. Quando o monge perguntou a Yun Men: “O que é Buda?”, o mestre sabia que a mente do questionador estava agitada pela palavra vazia “Buda” e para livrá-la da ilusão de Buda, respondeu: “Um desentupidor de privada”.  Nisto, não havia nenhum desrespeito ao Iluminado, já que a resposta tinha por objetivo purificar a mente deludida do discípulo dessa idéia impura; pois, o  Buda concebido por uma mente deludida nunca poderia ser o Buda puro, que está além de qualquer descrição. Entretanto, este caso particular não deve ser generalizado, já que a resposta foi apropriada para a pergunta naquele preciso momento. Por isso, Yun Men proibiu seus discípulos de registrar seus ditados. Da mesma forma, nós não podemos seguir o exemplo de Tan Hsia e sair queimando estátuas de Buda por aí.  O monge, num primeiro momento, ficou chocado, mas quando ele entendeu o ato do mestre, suas sobrancelhas caíram e iluminou-se instantaneamente.
Essas palavras, frases, gritos, gargalhadas, gesticulações e golpes de bastão são conhecidos como kung-an (koan, em japonês) ou causas contribuintes, capazes de provocar o despertar daqueles discípulos cujas mentes já estão livres da ilusão e cujas potencialidades são estimuladas ao máximo, estando prontas para absorver a verdade. Por exemplo, quando Hui K’o pediu a Bodidarma para aquietar sua mente, mas foi incapaz de mostrá-la para seu mestre, o Primeiro Patriarca, declarou: “Então eu aquietei sua mente”.  Ao ouvir essa declaração, o Segundo Patriarca iluminou-se instantaneamente. Essa frase foi um kung-an que contribuiu para a iluminação de Hui K’o. Literalmente, kung-an significa: dossiê, registro, leis e regulamentos do poder público criados para resolver disputas e manter a lei e a ordem. Da mesma forma, todas as instruções dadas pelo Buda e pelos Patriarcas para iluminar as pessoas deludidas são chamadas “As Ordens Corretas” da Seita ou guias irrevogáveis para revelar a verdade, e são denominados os kung-ans Ch’an.  Po-Yen, disse: “Quando recebiam homens de diferentes potencialidades, os antigos eram obrigados a dar-lhes instruções, que eram chamadas kung-an ou causas contribuintes”.  
A seguir, a exposição de 22 kung-ans compilados por Hsueh Tou (982-1052), um mestre Ch’an da escola Yun-Men (hoje desaparecida), que construiu as fundações dos 100 versos que compõem o Pi-yen-lu, conhecido no Ocidente como The Blue Cliff Record.


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 Kung-an # 1: O Mais Elevado Sentido das Verdades Santas

O Imperador Wu de Liang perguntou ao Grande Mestre Bodidarma: “Qual é o mais elevado sentido das verdades santas?”.

Bodidarma respondeu: “Vazio, sem santidade”.

O Imperador perguntou: “Quem está na minha frente?”.

Bodidarma respondeu; “Não sei”.

O Imperador não entendeu nada. Depois disso Bodidarma atravessou o Rio Yangtse e chegou ao reino de Wei. Mais tarde, o Imperador relatou o diálogo ao Mestre Chih e pediu-lhe esclarecimento.

Mestre Chih, perguntou: “Por acaso sua Majestade sabe quem é esse homem?”.

O Imperador respondeu: “Não, não sei”.

Mestre Chih disse: “Ele é Mahasattva Avalokiteshvara transmitindo o Selo da Mente de Buda”.

O Imperador mostrou-se arrependido, e assim queria enviar um mensageiro para convidar Bodidarma a retornar ao seu reino.

Mestre Chih lhe disse: “Majestade, não diga que enviará um mensageiro para convidá-lo a voltar. Mesmo que todos os cidadãos do reino fossem atrás dele, ele ainda assim não voltaria”.

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Kung-an # 2: O Caminho Supremo não é Difícil

Chao-Chou, ensinando à assembléia, disse: ”O Caminho Supremo não é difícil, apenas evitem escolher e selecionar. Enquanto houver palavras faladas, ‘escolher e selecionar,’ ’isso é a iluminação’. Este velho monge não mora dentro da claridade; vocês ainda preservam ou não alguma coisa?”.

Nesse momento, um monge perguntou: “Já que você não mora dentro da claridade, o que você preserva?”.

Chao-Chou respondeu: “Eu também não sei”.

O monge disse: “Já que você não sabe, Mestre, porque você insiste em dizer que não mora dentro da claridade?”.

Chão-chou disse: “Você já perguntou demais sobre o assunto, faça a reverencia e saia”.

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Kung-an # 3: O Mestre  não Está Bem

O Mestre Ma não estava bem. O Superintendente do templo lhe perguntou: “Mestre, como tem estado sua saúde por esses dias?”.

O Grande Mestre, respondeu: “O Sol de frente para Buda, a Lua de frente para Buda”.

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Kung-an # 4:  Carregando sua Trouxa

Quando Te Shan chegou ao mosteiro de  Kuei Shan, ele levou sua trouxa para dentro do auditório, e o atravessou de Leste a Oeste e de Oeste a Leste.

Ele olhou em volta dele e disse: ”Não há nada nem ninguém aqui”. Então, ele saiu.

Hsueh Tou acrescentou o comentário: “Completamente exposto”.

Mas quando Te Shan chegou ao portão do mosteiro,  disse: “Não deveria ter sido tão rude”.

Então,  ele voltou a entrar no auditório cheio de cerimônia para se encontrar com Kuei Shan. Assim que Kuei Shan se sentou no seu lugar, Te Shan levantou sua esteira e disse: “Mestre!”.

Kuei Shan segurou seu espanador, ao que Te Shan gritou, sacudiu suas mangas e saiu.


Hsueh Tou comentou: “Completamente exposto”.

Te Shan deu as costas para o auditório, calçou suas sandálias de cânhamo, e partiu.

Essa noite Kuei Shan perguntou ao monge chefe: “Onde está esse forasteiro que acabou de chegar?”

O monge chefe respondeu: “Naquela hora que ele deu as costas para o auditório, ele calçou as sandálias e partiu”.

Kuei Shei disse: “Daqui a algum tempo esse jovem irá ao pico de uma montanha solitária, construirá uma cabana de capim, e irá em frente escrachando  Budas e injuriando Patriarcas”.

Hsueh Tou comentou: “Ele acrescenta gelo à neve”.

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Kung-an # 5: O Grão de Arroz

Hsueh Feng, ensinando a sua comunidade, disse: ”Segurem o mundo inteiro em suas mãos, e ele é tão grande como um grão de arroz. Joguem-no na sua frente, e se como um balde laqueado, vocês não entendem, eu baterei no tambor e todo mundo virá para ver”.

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Kung-an # 6: Todo Dia é um Bom Dia

Yu Men disse: “Eu não pergunto a vocês até quinze dias antes; tratem de dizer algo  até quinze dias depois”.

Yu-Men, ele mesmo, respondeu: “Todo dia é um bom dia”.

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Kung-an # 7: Pergunta Sobre Buda

Um monge perguntou a Fa Yen: “Hui Chao pergunta ao mestre, o que é Buda”?

Fa Yen disse: “Você é Hui Chao”.


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Kung-an # 8: As Sobrancelhas de Ts’ui Yen

No final do retiro de verão Ts’ui Yen disse à comunidade: “Passei o verão inteiro falando para vocês, irmãos; olhem e vejam se minhas sobrancelhas estão ainda no lugar”.

Pão Fu disse: “O coração do ladrão é covarde”.

Ch’ang Ch’ing disse: “Cresceram”.

Yun Men disse: “Uma barreira”.

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Kung-an # 9: Os Quatro Portões

Um monge perguntou a Chao-chou: “Quem é Chao-chou?”.

Chao-chou respondeu: “o portão leste, o portão oeste, o portão sul, o portão norte”.

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Kung-an # 10: O Ladrão Impostor

Mu Chou perguntou a um monge: “De onde você acabou de chegar?”.

O monge deu um grande grito.

Mu Chou disse: “Você gritou comigo uma vez”.

O monge gritou de novo.

Mu Chou disse: “Depois de três ou quatro gritos, então o que?

O Monge não disse nada.

Mu Chou deu um chute no traseiro dele e disse: “Que ladrãozinho impostor que você é!”.


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Kung-an # 11: Os Restos de Migalhas

Huang P’o, instruindo a comunidade, disse: “Todos vocês são como restos de migalhas; se vocês continuam peregrinando desse jeito, onde alcançarão o presente? Vocês não sabem que não existe  um único Mestre Ch’an na China inteira?”.

Nesse momento, um monge veio para frente e disse: “Então porque tem aqueles que ordenam monges e comandam comunidades?”.

Huang P’o, disse: “Não digo que não há Ch’an; apenas digo que não há Mestres”.

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Kung-an # 12: Três Libras de Cânhamo

Um monge perguntou a Tung-shan: “O que é Buda?”.

Tung-shan respondeu:”Três libras de cânhamo”.

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Kung-an # 13: A Neve na Tijela de Prata

Um monge perguntou a Baling: “O que é a escola de Kanadeva?”

Baling respondeu: “Empilhar neve numa tigela de prata”.

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Kung-an # 14:  Uma Declaração Apropriada

Um monge perguntou a Yun Men: “ Quais são os ensinamentos de uma vida inteira?”.

Yun Men respondeu: “Uma declaração apropriada”.

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Kung-an # 15: Uma Declaração Inapropriada

Um monge perguntou Yun-Men: “Quando não há intelecto, quando não há fenômenos, o que acontece?”.

Yun Men disse: “Uma declaração inapropriada”.

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Kung-an # 16: Uma Declaração Inapropriada

Um monge perguntou Ching Ch’ing: “Eu estou saindo à força; eu peço que o mestre  entre à força.”

Ching Ch’in disse: Você irá viver ou não?”.

O monge respondeu: “Se eu não fosse viver as pessoas ririam de mim”.

Ching Ch’ing disse: “Você também é um homem preso nas ervas daninhas”.

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Kung-an # 17: Bodidarma Vem do Oeste

Um monge perguntou a Hsian Lin: ”Qual é o significado do Patriarca ter vindo do Oeste?”.

Hsian Lin respondeu: “Ficar sentado por um longo tempo cansa”.

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Kung-an # 18: O Monumento sem Emendas

O Imperador Su Tsung perguntou ao Grande Mestre Hui Chung: “Depois de morrer, o que será necessário para você?”.

O Grande Mestre disse: “Constrói um monumento sem emendas para mim”.

O Imperador disse: “Por favor, me diga Mestre, como deve ser esse monumento?”.

O Grande Mestre permaneceu em silêncio durante um longo tempo; depois perguntou: “Você entende?”.

O Imperador disse: “Não, não entendo”.

O Grande Mestre disse: “Tenho um discípulo, Tan Yuan,  ao qual eu transmiti o ensinamento e ele sabe muito sobre esse assunto. Por favor,  convoque-o e pergunte-lhe sobre esse assunto”.

Depois que o Grande Mestre morreu, o Imperador convocou Tan Yuan e lhe perguntou o significado de tudo isso.

Tan Yuan, disse:

“Ao sul de Hsiang, ao norte de Tan;
Entre esses dois há suficiente ouro para uma nação inteira;
Debaixo da árvore sem sombra a comunidade atravessa de barco;
Dentro do palácio de cristal não há ninguém que saiba “.

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Kung-an # 20: Bodidarma Vem do Oeste

Lung Ya perguntou a Ts'ui Wei: “Qual é o significado do Patriarca ter vindo do Oeste?”.

Wei respondeu: “Me passa o bracelete de meditação”.

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Kung-an # 21: Flor de Lótus, Folhas de Lótus

Um monge perguntou a Chih Men: “O que acontece quando a flor de Lótus ainda não emergiu da água”.

Chih Men disse: “Uma flor de Lótus”.

O monge disse: “ O que acontece depois que emergeu da água?”.

Chih Men disse: “Folhas de Lótus”.

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Kung-an # 22: A Cobra com Nariz de Tartaruga

Hsueh Feng ensinava à assembléia: “Na Montanha Sul vive uma cobra com nariz de tartaruga. Todos vocês devem dar uma boa olhada”.

Ch’ang Ch’in disse: “Hoje no auditório certamente há alguns perdendo seus corpos e suas vidas”.

Um monge relatou o episodio para Hsuan Sha.

Hsuan Sha disse: “O Irmão Ch’ang Ch’in é assim. Eu não”.

O monge perguntou: “E você, Mestre?”.

Hsuan Sha disse: “Para que usar a Montanha Sul?”.

Yu men jogou seu bastão na frente de Hsueh Feng, fazendo um gesto de pavor.

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