quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

* INTRODUÇÃO AO TREINAMENTO CH'AN

Tradução para o português de Wu-ming (1947-    )

Comentário do Mestre Lu K'uan Yu (1898-1978)

Introdução
O ideograma chinês Ch’an (ou Zen, em japonês) é o sinônimo da palavra dyãna em sânscrito, que significa meditação, uma das seis perfeições (Paramitã). Foi erroneamente usado para designar a transmissão da mente que o Tatâgata legou para Mahakasyapa e que o vigésimo oitavo Patriarca, Bodidarma, introduziu na China. Essa transmissão estava fora dos expedientes usados pelo Honrado-Pelo-Mundo (um dos muitos nomes de Buda) quando Ele expunha os sutras, e visava apontar direto para a mente para a percepção da própria-natureza e a obtenção da Budeidade.
Assim, Ch’an é o todo abrangente, enquanto que dyãna-paramitã é apenas uma das seis formas de salvação. A diferença fundamental entre a Seita Ch’an e as outras escolas é que, enquanto a primeira visa a iluminação instantânea, as outras procuram passar por sucessivos estágios de santidade até alcançar a iluminação. Por iluminação, os mestres Ch’an não se referiam a nada menos do que alcançar o próprio Darmakaya (o corpo espiritual, invisível para todos aqueles que na alcançaram a Budeidade).
Os comentaristas modernos confundiram-se na interpretação do Ch’an ou Zen e agora ouvimos falar sobre caligrafia Zen, pintura Zen, música Zen e arco e flecha Zen. Se um mestre fosse instado a confirmar a natureza Zen de uma caligrafia ou uma pintura, ele diria: “A espada sumiu há muito tempo”. É conveniente citar aqui a seguinte passagem de “Os ditados de Chung Feng” (Chung Feng Kuang Lu):

“O que é Ch’an? Ch’an é o nome da Mente. O que é a Mente? A Mente é a substância (essência) do Ch’an. Bodidarma veio do Oeste e apenas apontou direto para a mente do homem. No começo, o termo Ch’an não era usado, mas o resultado de apontar direto para a mente foi o conseqüente despertar dos seguidores da Seita. Nas suas perguntas e respostas, aquilo que não tinha nome era chamado de Ch’an apenas por conveniência. Todavia, o Ch’an não pode ser apreendido através do estudo ou por acaso. Quando a própria-mente é realizada, tanto a palavra ou o silêncio, como o movimento ou a quietude, é o inesperado Ch’an. No momento desse inesperado Ch’an, a Mente automaticamente manifesta-se por si mesma. Assim, sabemos que o Ch’an não difere da Mente e que a Mente não difere do Ch’an. O Ch’an e a Mente são, conseqüentemente, dois nomes da mesma substância.”

A finalidade da Seita Ch’an é despir a mente de todas as paixões e apegos com o propósito de libertá-la do mundo fenomênico, de forma que a própria-natureza possa retornar ao seu estado normal sem impedimento. Em vista disso, os mestres Ch’an raramente usavam aqueles termos Budistas encontrados em todos os sutras, já que os homens estão sempre propensos a apegar-se à terminologia que, na sua procura por mais ensinamento e maior sabedoria, só serve para estimular as faculdades do pensamento e intensificar as discriminações. Os mestres orientavam seus discípulos a evitar a procura da iluminação e a Budeidade, porque a simples idéia da iluminação e da Budeidade dava lugar ao conceito dual de realidade do ego e realidade do Darma, o que dividia seu todo indivisível em sujeito e objeto, a causa de sua ilusão e sofrimento. Essa é a razão pela qual os termos comumente encontrados nos sutras são raramente encontrados nos textos Ch’an, e por isso parecem estranhos e incompreensíveis mesmo para os Budistas das outras escolas. Esses textos são tão obscuros e incompreensíveis como as Profecias de Nostradamus e, freqüentemente, leitores confusos os colocavam de lado para sempre após ler umas poucas páginas. Nenhum mestre esclarecido se dava ao trabalho de dar uma explicação clara ou um comentário compreensivo dos ditados de seus iluminados predecessores. Mesmo quando citavam os ditados antigos, ao dar as instruções aos seus próprios discípulos, seus comentários, que variavam de uma frase a uma stanza (poema), eram igualmente obscuros e confusos para os principiantes.
Alguns filósofos modernos têm tentado estabelecer uma ligação entre o Ch’an e seus próprios conceitos e ainda tem sustentado que os mestres antigos usavam palavras sem nenhum sentido, gritos e outras gesticulações igualmente desconexas para iluminar seus discípulos. Obviamente, essas palavras, gritos, gargalhadas, etc., parecem sem sentido para uma mente discriminadora; mas assim que pára de discriminar, achará que estão cheios de sentido. Por exemplo, os gritos de Lin Chi tinham quatro significados diferentes, cada um apropriado para cada situação. Da mesma forma, uma gargalhada ou a amostra das duas mãos bem abertas são gestos cheios de significado. Quando se usa a mente discriminadora para comentar os ditados antigos, ver-se-á o dedo no lugar da lua que está sendo apontada.
Assim, nós não podemos culpar esses mestres pelos seus ditados aparentemente obscuros e abstrusos, porque se usassem as terminologias cunhadas pela inteligência humana condicionada, seus discípulos ir-se-iam apegar a elas, desviando-se assim do curso de treinamento normal. Quando o monge perguntou a Yun Men: “O que é Buda?”, o mestre sabia que a mente do questionador estava agitada pela palavra vazia “Buda” e para livrá-la da ilusão de Buda, respondeu: “Um desentupidor de privada”. Nisto, não havia nenhum desrespeito ao Iluminado, já que a resposta tinha por objetivo purificar a mente deludida do discípulo dessa idéia impura; pois, o Buda concebido por uma mente deludida nunca poderia ser o Buda puro, que está além de qualquer descrição. Entretanto, este caso particular não deve ser generalizado, já que a resposta foi apropriada para a pergunta naquele preciso momento. Por isso, Yun Men proibiu seus discípulos de registrar seus ditados. Da mesma forma, nós não podemos seguir o exemplo de Tan Hsia e sair queimando estátuas de Buda por aí. O monge, num primeiro momento, ficou chocado, mas quando ele entendeu o ato de mestre, suas sobrancelhas caíram e iluminou-se instantaneamente.
Essas palavras, frases, gritos, gargalhadas, gesticulações e golpes de bastão são conhecidos como kung-an (koan, em japonês) ou causas contribuintes, capazes de provocar o despertar daqueles discípulos cujas mentes já estão livres da ilusão e cujas potencialidades são estimuladas ao máximo, estando prontas para absorver a verdade. Por exemplo, quando Hui K’o pediu a Bodidarma para aquietar sua mente, mas foi incapaz de mostrá-la para seu mestre, o Primeiro Patriarca, declarou: “Então eu aquietei sua mente”. Ao ouvir essa declaração, o Segundo Patriarca iluminou-se instantaneamente. Essa frase foi um kung-an que contribuiu para a iluminação de Hui K’o. Literalmente, kung-an significa: dossiê, registro, leis e regulamentos do poder público criados para resolver disputas e manter a lei e a ordem. Da mesma forma, todas as instruções dadas pelo Buda e pelos Patriarcas para iluminar as pessoas deludidas são chamadas “As Ordens Corretas” da Seita ou guias irrevogáveis para revelar a verdade, e são denominados os kung-an Ch’an. Po-Yen, disse: “Quando recebiam homens de diferentes potencialidades, os antigos eram obrigados a dar-lhes instruções, que eram chamadas kung-an ou causas contribuintes”.
Quando os homens dotados de uma grande potencialidade e que respondiam ao kung-an se tornaram escassos, os mestres inventaram o que chamamos hua-tou para despir as mentes de seus discípulos de pensamentos e discriminações de forma a livrá-los da visão, da audição, da sensação e do intelecto. Hua-tou significa o exato momento antes que um pensamento ou uma imagem mental agita a mente, e seu sinônimo em inglês se aproxima do termo “antepalavra” ou “antepensamento”. Hua-tou é o pensamento do pensamento, e como todos os pensamentos são equivocados, o hua-tou também é um pensamento impuro usado como artifício para deter o processo do pensamento. Ele é chamado “a espada do Rei Vajra”, a concentração num único ponto para cortar todos os pensamentos e eventuais imagens mentais que possam invadir a mente do meditador durante seu treinamento. Esse pensamento único, fundamentalmente equivocado, também irá desaparecer depois da eliminação dos últimos vestígios da dualidade da realidade do ego e do darma.
Temos a honra de apresentar os seguintes textos:
1. Pré-requisitos para o Treinamento Ch’an
2. O Treinamento Ch’an
3. Palestras Diárias Durante Duas Semanas Ch’an

Os Pré-requisitos do Treinamento Ch’an, O Treinamento Ch’an, e as Preleções Diárias Durante Duas Semanas Ch’an do Mestre Hsu Yun são guias muito úteis, não somente para os praticantes Ocidentais do Ch’an, mas também para os adeptos da Seita no Oriente. Nesses textos, todas as informações são reveladas, e os termos difíceis e o significado profundo são exaustivamente explicados de forma que o principiante possa praticar o Darma da Mente sem a assistência de um mestre.
As estórias dos mestres antigos e os ditados citados pelo Mestre Hsu Yun são encontrados nas seguintes coleções Ch’an:
A Transmissão da Lâmpada (Ching Te Ch’uan Teng Lu)
O Encontro das Cinco Lâmpadas na Fonte (Wu Teng Hui Yuan)
Apontando o Dedo para a Lua (Shui Yueh Chai Chih Yueh Lu)
Seleção Imperial de Ditados Ch’an (Yu Hsuan Yu Lu)
Os Ditados dos Mestres Antigos (Ku Tsun Su Yu Lu)
Estórias de Monges Eminentes (Kao Seng Ch’uan)
Estórias de Upasakas Eminentes (Ch’u Shih Ch’uan)
O mestre também citou algumas passagens muito interessantes do Surangama Sutra (Leng Yen Ching) para aqueles meditadores que já estavam praticando o treinamento Ch’an.
Para familiarizar os leitores com a terminologia Ch’an, ou a linguagem do incriado, como disse o Upasaka P’ang Yun, “A Chegada do Mestre a Ts’ao Ch’i” foi inlcuído depois dos primeiros textos. Neste quarto texto, os leitores sentirão a mesma atmosfera dos mosteiros da China onde a linguagem do absoluto é falada para revelar “aquilo” que é inconcebível e inexprimível.
Este texto transportará os leitores ao próprio coração de T’são Ch’i, um distrito no qual o vento ainda sopra e onde, em 502 d.C., um mestre indiano construiu o mosteiro Pao Lin (Madeira Preciosa), prevendo que dali a 170 anos um Bodisatva de carne e osso chegaria para girar a Roda do Veículo Supremo. Em Madeira Preciosa, nasceram as cinco seitas Ch’an da China. Os leitores serão guiados pelo Mestre Hsu Yun através do Portão T’sao Ch’i, o Portão do Mosteiro, o Salão de Maitreya, o Salão de Wei To, o Salão de Han Shan, o Salão de Buda, os aposentos do Abade e, finalmente, o Salão do Darma, onde Hui Neng sentou no Altar para expor o insuperável Darma e libertou incontáveis seres vivos.
O Mestre Hsu Yun foi Abade do mosteiro Ku Shan, na Província de Fu Chien (Fukien). Numa noite de 1934, durante uma sessão de meditação, o Sexto Patriarca apareceu e disse: “Chegou a hora de retornar”. Na manhã seguinte, o mestre disse ao seu discípulo chefe, Kuan Pen: “Minha vida causal está chegando ao fim. Ontem, vi o Sexto Patriarca chamando-me de volta”. Na quarta lua cheia do mesmo ano, num sonho durante a noite, ele viu o Sexto Patriarca, que por três vezes instou-o a “voltar”. Depois de algum tempo, ele recebeu um telegrama do Governador da Província convidando-o a se transferir para Ts’ao Ch’i para tomar conta do mosteiro do Sexto Patriarca, que estava na mesma condição deplorável à encontrada por Han Shan mais de trezentos anos antes.
As palavras do Darma neste texto têm apenas um objetivo: apontar direto para a mente para a realização da própria-natureza e a obtenção da Budeidade, de acordo com a Transmissão legada pelos Patriarcas do passado.
Meu mestre, o Venerável Hsu Yun, era o filho do Oficial Hsiao Yu T’ang da Prefeitura de Chuan Chou, na Província de Fukien. Ele nasceu na hora Yin do último dia do sétimo mês do ano K’eng Tsu, no vigésimo ano do reino de Tao Kuang (26 de Agosto de 1840, entre as 3.00 e 5.00 horas). Sua mãe morreu logo depois do parto. Quando ele tinha 11 anos, duas pequenas meninas foram escolhidas para se tornarem suas esposas, mas foram mais tarde convertidas ao Budismo pelo seu marido “honorifico”. Depois da morte de seu pai, as duas jovens moças junto com sua madrasta entraram num mosteiro e se tornaram duas monjas iluminadas. Aos 13 anos, ele já pensava em “partir de casa”, mas foi impedido pelo seu pai. Aos 19 anos, ele fugiu de casa junto com um primo e se ordenou no mosteiro Ku Shan, onde sua cabeça foi raspada, sendo iniciado com o nome de Ku Yen e com os cognomes Yen Ch’e e Te Ch’ing. Aos 28 anos, ele isolou-se numa gruta durante três anos. Aos 30 anos, abandonou a gruta e passou a peregrinar de lugar em lugar procurando instrução. Um mestre ensinou-lhe a praticar o hua-t’ou: “Quem está empurrando este corpo agora?” Aos 43 anos, ele foi para P’u T’o e dali para a Montanha dos Cinco Picos. Durante a viagem a pé, ele foi pego por uma grande avalanche de neve, ficando gravemente ferido, sendo salvo duas vezes por um mendigo chamado Wen Chi, que lhe deu comida. Durante sua conversa com o mendigo, este lhe fez várias perguntas estranhas. O mestre, que ainda não estava iluminado, não percebeu que Wen Chi na realidade era Wen Shu, o nome chinês de Manjusri, que veio em seu resgate. Depois de sua estadia na Montanha dos Cinco Picos, ele viajou para o Leste e chegou a Lhasa e dali foi para o Butão, Índia, Ceilão e Burma antes de retornar a China, onde ele reconstruiu vários mosteiros, incluindo aqueles dos fundadores da Seita Ch’an. Ele também viajou pela Malásia e pela Tailândia onde deixou muitos seguidores.
O Mestre Hsu Yun foi o sucessor do Dharma das Cinco Seitas Ch’an da China e é considerado o olho do Dharma Correto da atual geração. A quantidade de seguidores é muito grande e não podem ser contados. Seus discípulos espalham-se por todo lugar e incluem um Abade, monges e monjas no Havaí.


UPASAKA LU K’UAN YU
Hong Kong, 22 de Maio de 1959.

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